sexta-feira, 25 de março de 2011

ESPIRITUALIDADE DO NATAL: Kayrós no ventre da humanidade - Eliomar Ribeiro, SJ


Espiritualidade é palavra derivada de “espírito”, que para os cristãos é a força criadora de Deus e a ação redentora e renovadora de Jesus Cristo. É Ele mesmo quem nos dá o Espírito (cf. João 20,22) e imprime em nós um jeito novo de caminhar conforme o projeto de Deus a serviço do Reino; eis a espiritualidade cristã.

Não se pode falar de espiritualidade do Natal sem levar em conta o que significou e significa a ação divina de descer até a nossa humanidade para ser um de nós: Emanuel! Pois Deus poderia continuar amando e cuidando do mundo sem se misturar com ele. Mas Ele preferiu amar ao extremo, sem medidas nem reservas, amar plenamente: veio ser um conosco, experimentar da nossa existência, da nossa fragilidade, da nossa condição humana. Só um Deus grande é que pode pensar e agir assim! E Ele veio e armou sua tenda no meio de nosso mundo. Elevando-nos à condição divina, salvando-nos por sua total solidariedade: “maior amor tem quem dá a própria vida”. Nem precisava ir ao extremo na dose de amor, mas assim o quis na solidariedade plena aceita pelo Pai como vontade de Filho que se deixa guiar pelo Espírito Vivificante. A morte já não mata!

No Natal, somos convocados a pensar mais no mistério do Deus Eterno que se faz um conosco! Natal é sacramento da encarnação divina! Não é simplesmente uma festinha de aniversário para comemorar um ano a mais do nascimento de Jesus. É que nos dias atuais, os ícones do “papai Noel”, do “pinheirinho”, das “guirlandas verde-vermelhas”, etc. tomaram o lugar do grande festejado. Muitas crianças já nem sabem o significado desta festa; sabem apenas que é um dia anual para ganhar presente. Quanto distanciamento do mistério que celebramos!

O poeta português Fernando Pessoa nos brinda com sua experiência do Natal:

“Ele é a Eterna Criança, o Deus que faltava.
Ele é o humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
que ele é o Menino Jesus verdadeiro”

O poeta reforça a idéia dos antigos profetas de sermos guiados por uma Criança! No Natal há uma evocação deste mistério: ser guiado por Deus que se fez menino e que se epifaniza aos homens e mulheres da terra. No Natal devemos rezar o mantra da Adélia Prado: “Meus Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande”.

Na liturgia do Advento e do Natal os textos da Sagrada Escritura e as Orações nos encharcam com tudo o que o mistério deste tempo revela. O tempo do advento, mas do que uma preparação imediata para celebrar o nascimento de Jesus, nos convida à preparação da segunda vinda do Senhor. Esperamos o reino pleno, quando verdadeiramente Deus será tudo em todos, e continuamos em vigília, preparando-nos para a vinda definitiva do Filho do Homem. Na feliz compreensão de Ione Buyst, natal (encarnação/proximidade/presença) e advento (espera/distância/ausência) se complementam. O que fica para nós cristãos e cristãs é que ao celebrar o sacramento da encarnação do Verbo de Deus já nos preparamos para a sua outra vinda. É um eterno kayrós para a Igreja que vive da fé e proclama a ressurreição do Senhor!

A Espiritualidade que brota do período da gravidez (advento) e do nascimento (natal), enquanto tempo da solidariedade total da Trindade Eterna para com a humanidade que andava nas trevas, sem notar a luz no fim do túnel, é o que move os corações de homens e mulheres guiados pela mesma estrela de Belém para contemplar, como os magos e os pastores, o Menino-Deus nascido que quer vida, dignidade, paz, saúde, educação, moradia, respeito, ternura, caridade para todos os que receberam o sopro da vida.

Vamos imaginar, como Alberto Caieiro, o menino Jesus cansado do céu, fugindo de lá e vindo viver conosco como uma criança igual às outras!?

No céu era tudo falso, tudo em desacordo

com flores e árvores e pedras.
No céu tinha de estar sempre sério (...)
Fugiu para o sol
e desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso natural.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
quando a gente as tem nas mãos
e olha devagar para elas.

A Criança Nova que habita onde vivo
dá-me uma mão a mim
e a outra a tudo que existe
e assim vamos os três pelo caminho que houver,
saltando e cantando e rindo
e gozando o nosso segredo comum
que é o de saber por toda a parte
que não há mistério no mundo
e que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
são as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas. (...)
Depois ele adormece e eu deito-o
levo-o ao colo para dentro da casa
e deito-o, despindo-o lentamente.
E como seguindo um ritual muito limpo
e todo materno até ele está nu.

Ele dorme dentro da minha alma
e às vezes acorda de noite
e brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
põe uns em cima dos outros
e bate palmas sozinho
sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
e leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu corpo cansado e humano
e deita-me na tua cama.
E conta-me história, caso eu acorde,
para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
até que nasça qualquer dia que tu sabes qual é.




Eliomar Ribeiro, é padre jesuíta, capixaba, escritor, poeta, compositor e quando escreveu este artigo vivia em Roma onde preparava o Mestrado em Teologia com especialização em Juventude.
eliomar@jesuitas.org.br

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