quarta-feira, 17 de setembro de 2008

A água

Todo mundo tem saudade de uma mina - ainda que nunca tenha visto uma. É que na alma... Ah! Você não sabe o que é alma! Eu explico. Alma é um lugar, dentro do corpo, onde ficam guardadas as coisas que a gente amou e se foram. Elas se foram mas não morreram. O amor não deixa que elas morram. Ele as guarda nesse lugar chamado alma. Ficam lá, esquecidas, dormindo... Mas, de repente, a gente se lembra! E quando a gente se lembra, vem a saudade... Saudade é o que a gente sente ao se lembrar de uma coisa gostosa que foi embora... Onde estão as minas? Você nunca viu uma. Mas eu garanto: em algum lugar da sua alma, e na alma de todo mundo, há uma mina de água cristalina. E a gente gostaria de beber da sua água, com as mãos em concha...

O Pequeno Príncipe... Você já deve ter lido o livro. Se não leu, trate de ler. Não veja vídeo nem ouça o CD com a estória. Leia. Os vídeos são ruins porque eles não deixam a gente imaginar a imaginação da gente. O que está no vídeo é a imaginação de um outro. E os CDs não são humanos. Eles vão contando a estória sem parar, mesmo quando a gente gostaria que eles fizessem uma pausa. Quando a gente está lendo, ao contrário, a alma vai produzindo o seu próprio vídeo: a imaginação é um vídeo só nosso. Lendo, a estória fica sendo minha; é a minha estória. E é possível parar, quando quer, voltar atrás, ler de novo. O Pequeno Príncipe vivia num asteróide. Caiu, por acidente, aqui na terra e foi andando, encontrando-se com homens, conhecendo costumes, com olhos de criança. Tudo lhe parecia espantoso! Pois ele se encontrou com um homem que lhe tentou vender pílulas de matar a sede. "Para que servem as pílulas de matar a sede?" - perguntou o principezinho. O vendedor se espantou. Como era possível alguém tão ignorante, que não percebesse os benefícios da técnica e da ciência? E tratou de explicar: "Os cientistas e pesquisadores verificaram que, durante um mês, as pessoas perdem 30 minutos, só indo aos filtros, geladeiras e bebedouros para beber água. Gastam esse tempo porque têm sede. Se não tiverem sede elas não gastarão mais esse tempo. A pílula de matar a sede, como diz o nome, mata a sede. Não sentindo sede, não precisam beber água. Não indo beber água, economizam, por mês, 30 minutos." O Pequeno Príncipe ficou espantado. "E o que é que eu faço com esses 30 minutos?", ele perguntou. "Com esses 30 minutos você faz o que você quiser", respondeu o vendedor. "30 minutos para fazer com eles o que eu quiser! Que coisa maravilhosa! E o que eu quero fazer com esses 30 minutos? Ah! Já sei! Se eu tivesse 30 minutos para fazer com eles aquilo que eu quero, eu iria tranqüilamente, andando até uma mina, para beber água..." Eu também gostaria de poder ir até aquela mina sobre que lhes falei, na última vez em que lhes contei sobre o mundo em que vivi na minha infância...

Mas as minas apresentam um problema: sede a gente tem o tempo todo; mas não há minas em todos os lugares. Isso era um problema sério para os homens que tinham de fazer longas caminhadas por lugares que não conheciam, para caçar. Eles não podiam ficar na dependência de encontrar minas que eles não sabiam se existiam, ao longo dos caminhos desconhecidos. E era também um problema para aqueles que trabalhavam na agricultura. Freqüentemente as minas ficavam muito longe do lugar do trabalho. E havia também o problema das pessoas doentes, fracas e velhas, que não tinham forças para caminhar até as minas.

Tem um ditado que diz: "É a necessidade que faz o sapo pular". Tradução: "É a necessidade que faz a cabeça pensar". Quando a gente não sente necessidade a inteligência não se move. Fica paradona, preguiçosa. E se recusa a aprender um punhado de coisas que, na escola, querem que ela aprenda. Às vezes a inteligência se recusa a aprender precisamente porque ela é inteligente! Ela pergunta: para que aprender uma coisa de que não necessito? Mas a sede é uma necessidade. Sem água a gente morre. E a inteligência logo se deu conta de que, se não houver um jeito de levar a água aos lugares onde não há minas por perto, há o perigo de morrer. E aí, pôs-se a pensar.

As mãos em concha são a solução simples para quem está ajoelhado ao lado da mina. Mas, e se a pessoa não puder se ajoelhar, por reumatismo ou velhice? Os homens observadores viram que há umas grandes folhas nas quais a água fica depositada, depois da chuva. Folhas de inhame. (É lindo ver as gotas de chuva, redondas e brilhantes, guardadas nas folhas de inhame. Quem viu uma vez não esquece. Fica guardado na alma...). Perceberam, então, que as folhas de inhame podiam ser usadas para substituir as mãos. Com duas vantagens. Elas são muito maiores que as mãos: guardam mais água. E, por não terem dedos, a água não escorre pelo meio deles. Folhas de inhame substituem as mãos, quando aquilo de que se necessita é a água. Assim, passaram a usar folhas de inhame para pegar a água da mina.

Folhas de inhame para substituir as mãos... Quando a gente fala em tecnologia a gente pensa sempre em máquinas complicadas. Não é nada disso. Técnica é tudo o que se faz para melhorar algum órgão do corpo. Óculos são melhorias dos olhos. Facas são melhorias dos dentes. Arcos e flechas são melhorias dos braços. Sapatos são melhorias dos pés. Bicicletas são melhorias das pernas. Cotonetes são melhorias dos dedos. Pois foi assim que a técnica nasceu: quando os homens aprenderam que podiam usar coisas que encontravam na natureza como ferramentas para atender às suas necessidades.

Mas não é possível ir viajar levando água numa folha de inhame! Para levar água longe seria necessário um objeto que prendesse a água. Aí eles observaram uns frutos curiosos, parecidos com abóboras, que não serviam para comer, vazios por dentro, que nasciam de trepadeiras. Cabaças, cuias. A imaginação funcionou: cabaças são muito melhores que folhas de inhame. Cortadas no meio, funcionam como se fossem conchas grandes. Ou copos. (Os índios fazem lindos artesanatos sobre cuias. E os gaúchos, movidos pela necessidade de tomar mate, aprenderam que cuias são maravilhosas para nelas se preparar o chimarrão...). É fácil guardar água numa cuia. Inteiras, com um furinho que se tampa com uma sabugo de milho, vira um cantil. Cantis e garrafas são cabaças melhoradas. Mas, para não se ter o trabalho de ficar segurando a cabaça de água com a mão, pode-se amarrá-la com um cipó ou uma embira, à volta da cintura. Cipós e embiras são melhorias das mãos: as mãos ficam livres para segurar as armas ou as ferramentas. (Sei que você não deve saber o que é embira. Mas não vou explicar. De propósito. Se você estiver curioso, vá consultar o dicionário. Uma das coisas mais importantes que você deve aprender na escola é consultar um dicionário ou uma enciclopédia. Mais importante que "saber" é "saber achar". O bom professor não é aquele que ensina coisa pronta; é aquele que ensina você a achar.)

Difícil era levar a água da mina até a casa. Não havia canos. Havia uma árvore que podia ser usada como cano, por ser oca por dentro: a embaúba. Ela se parece com um mamoeiro. Viajando por aí a gente a reconhece no meio das matas pelo prateado das suas folhas. Mas embaúbas não crescem em todos os lugares! Foi pela observação do jeito das águas correr que a inteligência encontrou uma solução. Os homens perceberam que a água sempre anda por conta própria. É só lhe dar um leito por onde correr que ela corre, sem que a gente precise fazer força. Aí veio a idéia de se fazerem miniaturas de rios que levassem a água de onde ela estava até o lugar onde queriam que ela estivesse. Assim se inventaram os "regos". Um rego é um riosinho artificial, para a água correr. Mas há uma coisa que a água não faz: ela não sobe morro...

Daí se deduz a primeira regra de como fazer a água chegar até perto da casa: é preciso que a mina d'água esteja mais alta que a casa. Estando mais alta, faz-se o rego e a água corre, até chegar à casa... Se estiver mais abaixo, o jeito é ir até lá e trazer a água num pote ou jarro...Potes ou jarros são vazios cercados de argila por todos os lados, menos o de cima... O importante no pote é aquilo que não existe: o vazio que está dentro dele. A cerâmica só tem a função de segurar o vazio... Porque é do vazio que a gente precisa. É o vazio que contém a água.

Difícil era tomar banho. Especialmente no tempo de frio. Era preciso esquentar água no fogão de lenha, e como não havia banheiro e chuveiro dentro da casa, o jeito era tomar banho de bacia, com canequinha. Complicado. O que significa que não se tomava banho todo dia. Banho diário é invenção moderna, felicidade não conhecida naqueles tempos. O que se usava, mesmo, era lavar os pés numa bacia. Foi assim durante milhares de anos. Jesus lavou os pés dos seus discípulos. Muitas vezes eu lavei os pés do meu pai.

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